quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A Arte de Furtar - Sermão do Padre Antônio Vieira

Padre Antônio Vieira
“Conjugam por todos os modos o verbo rapio, porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e esquisitos, que nem conhecem Donato nem Despautério.
“Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo,  porque, como têm o mero e misto império, todos eles aplicam despoticamente às execuções na rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quando lhes mandam, e, para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito e, basta só que ajuntem a sua graça, para serem quanto menos meeiros na ganância.
“Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia, usam da potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não têm o fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência.
“Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente – que é o seu tempo – colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e o futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões, e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente, e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos.
“Finalmente, nos mesmos tempos, não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plus quam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos, e elas ficam
roubadas e consumidas.

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